26.1.11

Helder Macedo: Memórias do Café Gelo

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“Conheci o Mário Cesariny julgo que em 1956, no Café Gelo, no Rossio, um café tradicionalmente frequentado por pacatos comerciantes imunes às intelectualidades institucionais da Brasileira do Chiado e aos esforçados suores estudantis na cave do Café Martinho que então havia para os lados do teatro Nacional. O Gelo tornara-se num conveniente local de encontro de alguns aspirantes a poetas com alguns aspirantes a pintores que partilhavam um parco atelier nas águas furtadas do prédio ao virar da esquina. Os jovens pintores, futuramente associados ao exílio parisiense do grupo KWY, atraíam outros pintores, e os jovens poetas atraíam outros poetas já exilados em si próprios. O Mário Cesariny, mais velho do que nós e por todos nós admirado, foi um deles. O que todos nós, os jovens do Café Gelo, tínhamos em comum era uma atitude de recusa, uma partilhada vontade de quebrar amarras, um só sabermos o que não queríamos para podermos deixar um espaço livre para o que pudéssemos talvez querer. A recusa de normas estabelecidas era a nossa única norma. O questionamento de valores impostos o nosso único valor. As noites eram os nossos dias. Estávamos todos muito zangados com o que queriam fazer de nós: o governo, as universidades, as várias polícias que não nos queriam deixar ser quem ainda não sabíamos que poderíamos querer ser, os intelectuais estabelecidos que nos queriam ensinar a sermos quem não queríamos ser. Desdenhávamos rótulos, desprezávamos preconceitos. Disto se seguia que a sexualidade de cada um não era motivo nem de aprovação nem de censura, não era sequer uma causa para se lutar a favor ou contra mas uma natural aceitação de que cada um fizesse o que quisesse com quem também o quisesse. E como, fora das nossas horas de serviço no Gelo, começava a haver pela cidade algumas intrépidas e virtuosas meninas que (antes da pílula!) se arriscavam a querer o que com alguns de nós elas próprias também queriam, ao menos nisso estava tudo bem para todos.
O Mário Cesariny foi acolhido no Gelo com respeitoso júbilo, não como o “penado” que sentia ser mas como um predecessor que tinha aprendido, antes de nós, que “faz-se luz pelo processo de eliminação de sombras”. Também encontrou ali um poiso acolhedor o supremo anjo caído, o já velhíssimo Raul Leal (sempre acompanhado pelo seu fiel ex-amante ex-pugilista) a recordar de punho erguido “com extrremo furror” de erres rolados o seu tão amado “Fernandinho”. Sim, esse mesmo, o Fernando Pessoa. Prolongamentos surrealistas numa nova geração? Sim, não e também. Era sobretudo a expressão de um grande nojo partilhado em modos convergentes de o exprimirmos. Recordo alguns nomes dos então jovens do Gelo, uns actualmente mais lembrados do que outros. De entre os das pinturas, o João Rodrigues, o João Vieira, o Gonçalo Duarte, o José Escada (e, por continuidade honorária, o René Bertholo, a Lourdes Castro e o António Costa Pinheiro). Também o Sá Caetano, a visualizar entre os dedos enquadramentos impossíveis de filmagens. De entre os das escritas, o Herberto Helder, o José Manuel Simões, o José Sebag, o Manuel de Castro, o José Carlos Gonzalez, o Virgílio Martinho, o António José Forte e o Ernesto Sampaio. Dois ou três deles, com vinte e poucos anos, já tinham passado pelas prisões políticas. Três ou quatro iriam morrer de suicídio ou de cirrose. Outros saíram a tempo do congelador e nem todos voltaram, mesmo quando voltaram. Ocasionalmente também passava pelo Gelo o Luiz Pacheco, a carregar pacotes de papéis e a cravar quinze tostões para uma bica; às vezes o Alfredo Margarido, que no entanto preferia a companhia do Edmundo de Bettencourt e do Pedro da Silveira no Café Restauração, na rua atrás. E, por extensão do Gelo no Café Lisboa depois das duas da manhã, também podíamos fruir da companhia civilizadora do Manuel de Lima, que discretamente foi infiltrando alguns de nós nas sibaríticas dissidências propiciadas pelas soirés em casa de Natália Correia, generosamente reclinada numa chaise-longue enquanto lhe contemplávamos o decote com olhos intumescidos.”
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[Hélder Macedo, in Relâmpago nº 26, Abril 2010]

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