14.12.10

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MEMÓRIA DO CAFÉ GELO
à memória de Mário Cesariny de Vasconcelos
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No Café Gelo, um grupo de poetas
demanda o elixir de vida curta,
de longa morte lenta e absoluta
.....e sílabas secretas.
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Mesas de mármore, cadeiras sépia;
eis um café à beira do abismo:
conversas incendiadas, sismo a sismo,
.....no desabar da época.
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Revolta, ódio, fome, febre atroz:
no riso pode haver isto e tristeza
e grande amor do sonho, e da beleza
.....a que o grupo dá voz.
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Não morreu este grupo: é perene
seu eco que deixou alto-relevo
numa parede-mestra, aonde subo
.....a pulso e tão solene!
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De cima da parede espreito e vejo
uma mesa ocupada por nós todos:
assembleia de pássaros ignotos
.....em ilhas de desejo.
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Vejo o corpo de glória de Lisboa
reclinado no ombro do Ernesto
para ler bem o seu ensaio honesto
.....dedicado a Pessoa.
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Vejo o Herberto a discutir mui louco
com o Gonçalo Duarte e o D'Assumpção;
o Forte tem o coração na mão
.....esquerda e fala pouco.
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Vejo o perfil do Saldanha da Gama,
o Virgílio em tríptico esboçado,
Raul Leal, d'Orpheu, Henoch irado
.....com lucidez de flama.
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Vejo um adolescente que sou eu
e que aspirava tanto a morrer jovem,
sentado, entre nós outros, quase à margem
.....numa fresta de céu.
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Manuel de Castro bebe o seu bagaço,
João Rodrigues faz desenho à pena
o Mário Cesariny põe em cena
.....a sua luz no espaço.
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Passaram mais de cinquenta anos
e uma tal luz persiste, não esmorece:
ilumina a leitura até ao vértice,
.....em versos soberanos.
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Poeta engalanado de galfarros,
noctívago andador com pés de jade
e poesia, amor e liberdade,
.....e mais de mil cigarros.
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Nas nuvens que se formam ao redor,
repousam borboletas d'asas pandas,
inebriadas pelo fumo às ondas
.....e cada vez maior.
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Rio de fumo espesso que atravessa
o jovem mágico, o das mãos de oiro,
esse que a remar não se cansa muito
.....e olha tão depressa
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tal se fosse de moto a singrar
no Tejo até à foz, do céu suspenso
por um fio de voz, vindo do imenso
.....cintil azul do mar.
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Na sombra, Cesariny d'alto porte,
agora dá mais luz, arde a cidade,
em poesia, amor e liberdade,
.....até matar a morte.
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[António Barahona, in Relâmpago nº 26, Abril de 2010]

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