6.1.10

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uma farsa maldosa

Houve em tempos um senhor muito rico que se aborrecia enormemente. Desta sorte, para dissipar o tédio utilizava os seus contemporâneos num sem número de farsas, todas elas do pior gosto, esclareçamos desde já.
Certa manhã, chegando àquela praça pública onde por hábito se reúnem os pedreiros que procuram um emprego, ei-lo que faz uma proposta a dois deles com ar de serem um tanto estúpidos:
- Querem ganhar hoje vinte francos cada um?
- Nem se pergunta, senhor!
- Oiçam então! Trata-se de uma parede a construir já e com a maior rapidez, de forma a que fique logo seca e seja indestrutível, mal vocês acabem de levantá-la.
Os dois pedreiros vão arranjar tudo o que é preciso: pedra de alvenaria e um certo cimento que eles muito bem conhecem.
O senhor rico fá-los subir para um carro e leva-os a um edifício muito, muito afastado, à distância de um tiro da casa do Diabo mais velho.
Manda-os entrar para uma pequena sala iluminada por duas janelas em ogiva, muito estreitas e robustamente gradeadas, que filtravam a claridade de um velho pátio (um poço, melhor diríamos) que mais lembrava um congresso das ervas daninhas de todas as floras.
Diz um dos pedreiros:
«Isto por aqui tem um mau focinho!»
Entretanto, o senhor rico dá instruções sobre o trabalho: uma porta que tem de ser fechada com uma parede. Um luís logo de entrada, outro depois da tarefa concluída.
A noite começava a descer no instante preciso em que a última pedra era assente.
Os pedreiros enxugavam com a manga o suor da fronte, na satisfação daquele trabalhinho tão bem feito.
A sua face foi no entanto invadida por uma palidez súbita. A porta… aquela porta que eles tinham fechado com tanta consciência (ou inconsciência), a porta… era a única saída da sala!
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Embora já tenha decorrido um bom par de anos sobre esta aventura, o tal senhor rico não consegue passar à frente da parede sem rir a bandeiras despregadas.
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[Alphonse Allais, in Antologia do Conto Abominável (selecção e tradução de Aníbal Fernandes, prefácio de Vítor Silva Tavares) Afrodite, 1969]

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