27.2.09

Henry Miller: “o meu mundo”

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“A maravilha e o mistério da vida, que são sufocadas em nós quando nos tornamos membros responsáveis da sociedade! Até sermos empurrados para o trabalho, o mundo era muito pequeno e nós vivíamos na sua orla, por assim dizer na fronteira do desconhecido. Um pequeno mundo grego, apesar de tudo suficientemente profundo para nos proporcionar toda a espécie de variedades, toda a espécie de aventura e especulação. Mas também não era tão pequeno como isso, pois tinha de reserva as mais ilimitadas potencialidades. Não ganhei nada com o alargamento do meu mundo; pelo contrário, perdi. Desejo tornar-me cada vez mais infantil e passar para além da infância na direcção oposta. Quero seguir exactamente ao contrário da linha normal de desenvolvimento, passar para um estado de ser superinfantil, que será absolutamente louco e caótico, mas não louco e caótico como o mundo que me rodeia. Fui adulto, e pai, e membro responsável da sociedade. Ganhei o pão de cada dia. Adaptei-me a um mundo que nunca foi o meu. Quero abrir caminho através desse mundo alargado e encontrar-me de novo na fronteira de um mundo desconhecido, que mergulhará em sombra este mundo pálido e unilateral. Quero passar da responsabilidade da paternidade para a irresponsabilidade do homem anárquico que não pode ser coagido, nem adulado, nem persuadido, nem caluniado. Quero escolher como guia Oberom, o cavaleiro nocturno que, sob o palio das suas asas negras, elimina tanto a beleza como o horror do passado; quero correr para uma alvorada perpétua com uma velocidade e uma implacabilidade que não deixem campo para o remorso, pesar ou arrependimento. Quero ultrapassar o homem inventivo que é uma maldição para a Terra, a fim de me encontrar de novo perante o abismo intransponível que nem as asas mais fortes me permitirão vencer. Mesmo que me torne um parque natural e selvagem habitado apenas por sonhadores indolentes, não me quero deter a descansar aqui, na fatuidade ordenada da vida adulta, responsável. Quero fazê-lo em memória de uma vida sem comparação alguma com a vida que me foi prometida, em memória da vida de uma criança que foi estrangulada e reprimida pelo consentimento mútuo daqueles que se tinham rendido. Renego tudo quanto os pais e as mães criaram. Vou regressar a um mundo ainda mais pequeno do que o antigo mundo helénico, regressar a um mundo que poderei sempre tocar se estender os braços, ao mundo do que sei, e vejo, e reconheço de momento a momento. Qualquer mundo é absurdo para mim, absurdo, e estranho, e hostil. Ao reatravessar o primeiro mundo luminoso que conheci em criança, não desejo parar lá e, sim, forçar a passagem para um mundo ainda mais luminoso, do qual devo ter vindo. Ignoro como esse mundo é e nem sequer tenho a certeza de o encontrar, mas é o meu mundo e nada mais me preocupa.”
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[in Trópico de Capricórnio, trad. Fernanda Pinto Rodrigues, ed. Livros do Brasil]

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