2.12.08

Dois grandes editores desaparecidos

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Desapareceram na semana passada dois editores portugueses da maior importância, um deles ainda em actividade:
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No Domingo, dia 25, faleceu Rogério Mendes de Moura (1925-2008), fundador dos Livros Horizonte, que ainda dirigia. Desta editora assinale-se, entre outras coisas, a importante colecção Cidade de Lisboa. Pode ler-se aqui um artigo no DN de Junho de 2007 sobre este editor.
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Um dia depois faleceu Joaquim Figueiredo Magalhães (1916-2008), que se destacou sobretudo por ter fundado e dirigido durante alguns anos a Ulisseia (o seu sucessor foi Vitor Silva Tavares), editora marcante pela publicação de inúmeros autores estrangeiros nunca antes editados em Portugal (Faulkner, Kerouac, Durrel, etc.) mas também grandes autores portugueses (Cardoso Pires, Vergílio Ferreira, Carlos de Oliveira, etc.), tudo isto com uma qualidade invulgar para a época.
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O Público de ontem trazia um artigo de Catarina Portas sobre Joaquim Figueiredo Magalhães, que deixo aqui:
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Joaquim Figueiredo Magalhães (1916-2008)
O último livro da Ulisseia s. f. f.

01.12.2008
Por Catarina Portas

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Sempre acreditei que a morte não teria coragem de se aproximar dele. Mas, afinal, também ela não lhe resistiu. Aos 92 anos, desapareceu Joaquim Figueiredo Magalhães, o primeiro grande editor moderno português. Ele era o homem mais vivo que jamais conheci. Maravilhosamente culto, espantosamente audaz, loucamente imaginativo e, para usar uma das suas expressões favoritas, altamente divertido, este homem era também, em igual medida, justo e generoso. Todos aqueles que gostam de livros lhe devem mais do que sabem.
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Era, de facto, um homem irresistível. Quando nos cruzámos na vida, eu ainda não tinha 30 anos e ele aproximava-se dos 80 mas, com absoluta naturalidade, ficámos amigos. Costumávamos almoçar no Chiado, no pequeno Restaurante da Trindade, onde há décadas tinha mesa cativa junto à janela, ou na Severa, ao Bairro Alto. Ele queria sempre falar do futuro mas eu espicaçava-o para que me contasse as histórias do seu passado. Ouvi-lo era pura volúpia. Nasceu no Porto a 5 de Agosto de 1916, filho de boas famílias. Um dia perguntei-lhe o que o levou a ser editor e ele respondeu: "Tanto a família do meu pai como a da minha mãe tinham boas bibliotecas." E ele lia, lia tudo porque não lhe proibiam nada. Fez os estudos primários em escolas municipais, "o que me deu imensa alegria, uma grande liberdade e uma compreensão, precoce, da solidariedade". Mais tarde, foi enviado para o elitista colégio jesuíta de La Guardia, na Galiza, e depois para o seu equivalente português, o colégio das Caldas da Saúde. "Os jesuítas tinham uma maneira extraordinária de nos manipular, para aprendermos e termos prazer no conhecimento." Vem para Lisboa em 1936, estudar Histórico-Filosóficas, e simultaneamente matricula-se na Escola Superior Colonial, um curso que era "pura fantasia".
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Reclames de avioneta
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Aquele espírito vivo que nos iluminava as conversas nasceu com ele. Mal concluiu os dois cursos, pôs-se a ter ideias para montar negócio. Fez uma tentativa ambiciosa para obter a representação da Coca-Cola em Portugal. Em 1945, fundou a Stop, uma agência de publicidade, em colaboração com um pintor e um escritor, "eu era o das ideias", claro está. Interessou-se por helicópteros americanos e quis fazer um aeroporto "com cara de aeroporto" para substituir os barracões da Portela de então. Sempre investimentos grandes que não foram adiante porque a banca não acreditou naquele homem que não sabia pensar pequeno, à escala do país em que vivia. Morava no Chiado e frequentava os seus cafés, o Café Chiado e a Brasileira, onde dominavam os intelectuais de acção nas mesas da frente e os políticos e os agentes da PIDE lá atrás. A sua juventude impressionou-se com os intelectuais, esses seres "flamejantes". Queixavam-se todos de que tinham obra mas não quem os editasse. Ele ouviu-os e aventurou-se. Começou por edições soltas, entre elas O Barão de Branquinho da Fonseca. Com dinheiro de família, funda em 1950 a primeira editora, a Édipo, lançando a colecção Escaravelho d'Ouro. "Os nossos intelectuais, na altura, entendiam que a literatura policial era secundária, de fancaria. Mas há livros notáveis: o Chandler, o Dashiel Hammet, a Agatha Christie, o Simenon, o Maurice Leblanc, fui eu que os editei." Com a imaginação, a audácia e a argúcia que haveriam de caracterizar toda a sua actividade editorial, decide apostar no gosto português pelo jogo e logo inventa uma colecção de 12 volumes, cada uma das obras passando-se numa cidade diferente do mundo. Em cada volume, inclui três talões, um para o livreiro e dois para o leitor, dando direito a participar num sorteio mensal de uma viagem ao "local do crime", durante uma semana e num hotel de cinco estrelas. Inovou na divulgação, publicitando a colecção em chapéus de papel no futebol, sobrevoando o Estádio Nacional numa avioneta com reclame, mandando pintar a empena de um prédio nos Restauradores. Foi um sucesso. "Não se perde dinheiro como editor quando se esgotam os livros todos." Com os lucros da Escaravelho d'Ouro, Joaquim Figueiredo Magalhães lança dois anos mais tarde a Ulisseia. "Achei que devia iniciar actividade com um pleito à arte da edição e por isso o primeiro livro foi Da Famosa Arte da Imprimição de Américo Cortês Pinto." Para perceber porque Figueiredo Magalhães ganhou o título de primeiro editor moderno português basta olhar para os mais de 20 anos da Ulisseia. Aos seus conhecidos do Chiado foi buscar os membros do Conselho de Leitura. Branquinho da Fonseca, Casais Monteiro, Mário Henrique Leiria, Jorge de Sena, José Blanc de Portugal, João Gaspar Simões, e mais quem aparecesse, reuniam-se nas tardes de sexta-feira "com uma garrafa de whisky" para comentar os livros, trocar as revistas literárias estrangeiras que assinava, assinalar possíveis problemas com a censura, decidir tradutores. "Escolhi escritores como tradutores porque eram homens que sabiam português. É que se eu quisesse alguém que soubesse línguas, entregava as traduções ao porteiro do Avenida Palace que sabia oito idiomas, só não sabia era português. Mas também preferia os escritores porque gostavam do que traduziam, traduziam por gosto." E pagava bem as traduções, não se esquecendo de, em cada reedição, enviar um cheque, tanto a tradutores como capistas, no valor de um terço dos honorários iniciais. Em Londres, conheceu Neves Pedro, que era guia intérprete, logo percebeu que era um homem de "boa ilustração" e aliciou-o para se tornar seu agente. "Ele levantava muita caça." A lista de escritores que a Ulisseia publicou pela primeira vez em português é uma caçada deveras impressionante: Hemingway, Faulkner, Orwell, Steinbeck, Caldwell, Doris Lessing, Kingsley Amis, Pratolini, Coccioli, Moravia, Julien Green, Mauriac, Sagan - e são só alguns. Foi a Ulisseia que publicou o Quarteto de Alexandria de Lawrence Durrell, o On the Road do Kerouac, As Memórias de Adriano de Marguerite Yourcenar, O Americano Tranquilo de Graham Greene. Tinha mais direitos de livros do que aqueles que conseguia editar, vendia-os aos outros. Foi o primeiro editor português a ir à feira de Frankfurt, ficou a conhecer bem a Alemanha porque "já tinha tudo comprado antes".
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Negócio com a censura
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Vou à estante, à prateleira onde estão as edições da Ulisseia que continuo a coleccionar, e tiro um exemplar: O Ente Querido de Evelyn Waugh. A capa moderna e luminosa é de Querubim Lapa, a tradução de Jorge de Sena e o livro está semeado de deliciosas ilustrações de João Abel Manta. Não é apenas um livro, é uma edição perfeita. O seu credo: "Cada livro deveria ser uma obra artística, quer no texto, quer na ilustração. Por isso cada obra tinha uma equipa: o capista, o ilustrador, o tradutor e o autor." Gostava de artes gráficas e, para as capas, chamou artistas como Sebastião Rodrigues, Querubim Lapa, Vespeira, António Garcia, Câmara Leme, etc. Estruturou a edição em diferentes colecções: a "Série Literária" para a grande ficção de romancistas estrangeiros contemporâneos; a "Sucessos Literários" para best-sellers do momento; a "Documentos do Tempo Presente" de livros de ensaio, memórias e outros; e, finalmente, a "Atlântida", onde conviviam escritores portugueses, brasileiros, espanhóis e ibero-americanos. Aos portugueses, propôs desde logo um negócio inédito. Decidiu pagar os mais altos direitos de autor do mercado, 20 por cento do preço de capa, e adiantava mensalmente uma parcela dessa verba para que pudessem escrever em paz. Editou Cardoso Pires, Vergílio Ferreira, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, David Mourão-Ferreira ("Gaivotas em Terra, fui eu que lhe dei o nome"). Praticamente nunca editou poesia. "Só editava aquilo que conhecia e que sentia. E a poesia só comecei a senti-la depois. Nessa altura, até o próprio Pessoa me passou um pouco ao lado", lembrava num instante muito raro de alguma tristeza. Voltava logo ao seu tom malicioso quando o questionava sobre o seu equilíbrio improvável na sociedade da época: "Eu estava muito bem colocado entre os jesuítas, a censura e os comunistas." A dada altura, entregava traduções a presos políticos em Peniche e em Caxias, justificando à censura que "sempre é preferível estarem a trabalhar do que a conspirar... E assim as famílias sempre recebiam algum". Pois nem a censura lhe conseguia resistir, publicou 14 livros proibidos. "Todos os livros proibidos foram sempre um negócio. E também um negócio com a censura." Ria-se, ria-se perdidamente ao revelar o estratagema engendrado para a publicação do escandaloso Bonjour Tristesse. Comprara os direitos antes de descobrir que a edição francesa já estava proibida em Portugal. "Como é que eu podia pôr o livro cá fora? Desde que ele fosse muito bem amparado!" Assim, contratou para tradutora Carmo Azambuja, irmã de Natércia Freire, presidente do Apostolado de S. Francisco de Paula, crítica literária no Diário de Notícias e figura conceituada do regime, pedindo a esta última o prefácio. Passou o dito cujo prefácio ao "amigo do peito da Natércia", o crítico oficial do Estado Novo João Ameal, a quem confidenciou que o cardeal arcebispo de Viena tinha recomendado o livro "para prevenir contra os maus exemplos". Depois, foi ter com Armando Larcher, o director da censura, com quem mantinha um diálogo cordato. Não, ele não podia levantar a proibição. "Mas também não me podia impedir de o oferecer às livrarias... Chegámos a esse acordo. Por isso é que todos os livros têm "oferta do editor", escrito à mão que até me doía o braço! Chegou aos 20.000 exemplares. E como era proibido, os livreiros não podiam descontar a sua parte. Eles vendiam e eu ganhava. Foi assim que comprei o meu iate."
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Suite nº5
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Ríamos muito, que ele sempre levou a ironia muito a sério. O nosso episódio preferido era a "história do grande bluff" ou de como Joaquim Magalhães conseguiu arrancar à Penguin os direitos para Portugal e o Brasil da sua famosa colecção Pelican, que tantos dos seus pares cobiçavam à época. Para tal informou-se sobre os aposentos mais exclusivos na cidade de Londres e assim reservou por uma única noite a suite n.º 5 do Dorchester Hotel. "Tinha um hall extraordinário, com uma carpete que parecia uma savana, daquelas em que as pessoas parece que se enterram até ao pescoço." E fez saber que, editor de passagem na cidade, gostava de se encontrar com Sir Allen Lane, o célebre dono da Penguin. Este, impressionou-se devidamente e mandou o Rolls Royce buscá-lo. Nesse almoço, Figueiredo Magalhães convenceu-o. E ainda convidou Tom Maschler, o editor da Pelican, a vir a Portugal mas, para evitar a ruinosa diária do Ritz, sugeriu-lhe que fosse passar a semana a bordo do seu iate no Algarve. "A história espalhou-se. O Sir Collins já me queria dar a representação da Phaedon, a Carmen Bacellos procurou-me em Barcelona... Achavam que eu era o Onassis da edição!"
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Só de mulheres
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Em 1959, resolve lançar uma revista, o Almanaque, cujas 18 capas de Sebastião Rodrigues e de Abel Manta são pura antologia da história do design gráfico português. Cardoso Pires, José Cutileiro, Sttau Monteiro, Alexandre O'Neill ou Augusto Abelaira são dos mais assíduos, mas a revista conta com as colaborações de Leitão de Barros, Irene Lisboa, Almada Negreiros, Sophia de Mello Breyner. "No Reino do Pacheco" é a secção não assinada mais delirante, ao lado de artigos de floricultura, automobilismo e até biografias de santos. Vasco Pulido Valente, que aí começou, escreveu neste jornal: "Sem ele e sem o lugar livre e alegre que ele criou na cultura portuguesa, o regime paroquial e bronco de Salazar teria sido para muita gente muito mais pesado". "Houve quem me contasse que chegava ao ponto de ir à livraria e mandar embrulhar o último livro da Ulisseia, qualquer que ele fosse. É o máximo que um editor pode desejar!" Porém, em 1972, decide vender a Ulisseia. Queria continuar a editar um livro por ano, autores clássicos, alguns de carácter erótico ilustrados por mulheres como Sarah Affonso e Maria Keil, em edições de luxo coloridas au pochoir. A sua imaginação sempre foi voadora, andava entusiasmado com aviões. Quis fazer uma companhia de aviação, depois um negócio de importação aérea de marisco de Cabo Verde para a Europa, a meias com Champalimaud. Falharam. Quis comprar a Ulisseia de volta mas a Verbo não acedeu. Fundou então a Meridiano para editar livros para a Gulbenkian, passou como director literário pela Bertrand na revolução, fundou finalmente a Convergência, que manteve até quase ao fim, no Chiado. Sempre que mencionava os seus desaires financeiros, ria-se. Ou não, quando implicavam outros. Nos nossos almoços, falávamos muito do passado e do presente, das aventuras da vida, muito em voo de pássaro pela política, de amor e até de sexo e lingerie. Mas ele queria era falar do futuro. A vida dele era sempre para diante. Quis um dia que fosse sua sócia numa editora só de mulheres, ele achava que o país precisava disso. Outra das sócias seria a sua segunda mulher, Rosa Lobato de Faria, que amava infinita e comoventemente. E insistia noutro projecto, aparentemente megalómano para a sua idade, o primeiro grande dicionário lusófono. Na última vez que almoçámos, há uns meses atrás no Belcanto, o seu corpo estava mais velho mas os seus olhos ainda faiscavam e o seu sorriso matreiro e carinhoso continuava contagiante. Contou-me que relia muito Santo Agostinho, esse autor que disse sobre os mortos, certeiramente, que eles não são ausentes, apenas invisíveis.

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