12.11.08

Cotovia por Luís Quintais

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Para comemorar os seus 20 anos, a Cotovia preparou o livro Não será por acaso, 20 anos, reunindo textos de alguns dos seus autores e colaboradores. Um dos textos é de Luís Quintais, que o deixou n'Os Livros Ardem Mal. Fica também aqui:
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"Mapa de afectos. Idos anos noventa. Princípios, certamente. A minha descoberta da Cotovia coincide com uma espécie de existência pessoana que atravessava então os meus dias e que constitui hoje uma das mais gratificantes memórias que tenho de Lisboa.
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Trabalhava na Rua do Loreto com os meus tios e primos numa pequena empresa de contabilidade e auditoria que já não existe. Os meus vinte e poucos anos eram uma demanda pelas ruas da cidade, entregando trabalhos concluídos, recebendo outros que teriam por destinatários os exímios mestres contabilistas, os meus tios Fernando e Gabriela, o meu primo João e o magnífico leitor de Proust que era o João Pedro Carreira. Uma existência pessoana ou walseriana, porque, de algum modo, o escritório da Rua do Loreto (que dava para o Bairro Alto numa iluminação tranquilizadora digna de Vermeer que fiz celebrar num dos meus poemas de A Imprecisa Melancolia) era uma espécie de Instituto Benjamenta, mas onde a crueldade tinha sido substituída integralmente pela ironia, uma arte cultivada com o rigor e a probidade com que se assentava numa linha de um livro de balanço. A rua, todas as ruas que na Rua do Loreto encontravam um centro irradiante, transportavam-me para formas de onirismo indisciplinado que nunca mais voltei a conhecer. Como se o meu Instituto Benjamenta (lugar de ofício, ironia, e extremo bom senso também) – o escritório do meu tio Fernando – tivesse um contraponto nessa encruzilhada de símbolos que habitavam a superfície do quotidiano. A minha vida era uma forma espacializada de «abandono vigiado», a usar um título de O’Neill que é, como se sabe, todo um programa. Um contraponto numa encruzilhada de símbolos e de lugares como, por exemplo, a belíssima Livros Cotovia na Rua Nova da Trindade, aí, numa das fronteiras invisíveis da cidade, aquela que coincide com as Escadinhas do Duque e que dá acesso ao Rossio – essa sempre eterna despedida da vida, como me recorda António Maria Lisboa – e à linha de fuga que é o Terminal ferroviário onde história, violência e margem vinham hibridizar o meu mapa de afectos.
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Como flâneur e leitor descobri a Cotovia naqueles primeiros anos da década de noventa. E o que lia eu naquela altura? Poesia, sobretudo. E através da poesia descobri uma revista magnífica que a Cotovia fazia publicar. Refiro-me à entretanto desaparecida (uma das memoráveis desaparições da minha vida de leitor) As escadas não têm degraus. Descobri também um dos escritores da minha vida, Edmund Jabès. Não me esqueço nunca de A obscura palavra do deserto, uma poesia que me parece longe, bem longe daquilo que motiva uma parte significativa dos poetas contemporâneos mais canonizados entre nós, e talvez ainda bem porque Jabès será sempre coisa de poucos, enigma de muitos, e o ruído e a sobredeterminação das glórias literárias sempre me aborreceu infinitamente. Depois vieram outros, tantos, que o catálogo da editora discretamente descreve, revela.
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A Cotovia é uma editora que permanece, pelo seu catálogo, pelo rigor com que trata os seus autores e os seus textos, fora daquilo que é o mundo editorial português, e não só. Dir-se-ia que, como o Jabès, permanece fora daquilo que convencionamos hoje por literatura ou por edição, e com isso ensina-nos como se pode sobreviver sem beneplácito nem usura. Um dos grandes méritos é nunca ter confundido livros com literatura. Outro dos méritos é ter enobrecido, pela sóbria singularidade do desenho do seus livros, a literatura, como provavelmente muito poucas editoras o fizeram. Como se não misturasse livros com literatura, mas soubesse perfeitamente onde está o lugar – an Italy of the mind, escreveria certeiramente Wallace Stevens – onde literatura e livros se encontram, se encontrarão sempre.
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Tudo isto pode ser atribuído, com inteira justiça e justificação, a André Fernandes Jorge. Aí está alguém que dispensa elogios ou encómios, mas de quem é um privilégio poder reconhecer entre os nossos amigos mais admirados, por mim, por todos aqueles que o conhecem e que com ele têm colaborado. Porque a amizade é ainda um dos poucos círculos iluminados de lealdade que conheço. Parabéns Cotovia, parabéns André!"

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