10.10.08

Dinis Machado: entrevista à Ler em 2002

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Dinis Machado foi entrevistado por Sara Belo Luís para a Ler de Outono de 2002. Aqui fica:
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A BALADA DO ESCRITOR ADIADO

Durante muito tempo refugiou-se à sombra de um pseudónimo americano, inventado para fazer sair uma trilogia de romances policiais com um herói “borgesiano”. Em 1977, cumprem-se agora vinte e cinco anos, escreveu O Que Diz Molero, o livro onde depositou as memórias de uma infância perdida nas ruas de um bairro popular de Lisboa. Apesar do êxito obtido junto da crítica e do público, o “bartleby” Dinis Machado sempre recusou a carreira literária que alguns lhe davam como certa. Preferiu, antes, ficar à esquina, a lembrar-se do tempo em que, nas prateleiras de um alfarrabista, descobriu Viagem ao Fim da Noite, apenas porque gostou do título. Vida e obra de um dos poucos escritores de culto portugueses.
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Em jeito de metáfora, ele chama-lhe pesca à linha. Só que, em questões literárias, não existem canas para segurar com vigor. Nem muito menos qualquer espécie de isco, capaz de atrair cardumes inteiros. Mesmo assim, Dinis Machado teve uma boa jornada. Ao logo de setenta e dois anos de vida, o pescador – de livros, entenda-se – apanhou pesca grossa, mas também muita arraia-miúda. Desafiando cânones, fronteiras e estatutos adquiridos, de ambas, retirou um pormenor, uma história eloquente, uma personagem audaz. Uma frase, uma palavra. Dessas leituras de juventude conduzidas ao acaso, guardou tudo, bem guardado, bem fechado. Para quando, um dia mais tarde, se decidisse a imprimir o seu próprio nome na capa de um volume.
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Esse dia haveria de surgir em 1977, quando Maria da Piedade Ferreira, então responsável pela Bertrand, não deixou escapar o manuscrito do romance que acabou por se tornar num dos maiores êxitos editoriais portugueses das últimas décadas. No papel mais barato disponível no mercado, saiu O Que Diz Molero, uma história contada pelas personagens Austin e Mister Deluxe, a partir de um relatório completíssimo de trezentas e doze páginas. Em 1994, Nuno Artur Silva adaptou a obra ao teatro, numa peça que entretanto foi reposta para plateias sucessivamente lotadas. Dela se publicaram dezoito edições e cinco traduções. Lançada este ano, a versão francesa suscitou-lhe os maiores elogios no Libération, no Fígaro e no Magazine Littéraire. O retrato do Bairro Alto dos anos 1930 foi comparado a Kafka, a Orwell e a Borges no país da Alta Cultura. Ainda hoje Dinis Machado, o rapaz nascido na Calçada do Combro, se espanta com os louvores que lhe dirigem. Ele, que levou toda a vida para escrever um livro. Também foi jornalista no Diário de Lisboa e no Diário Ilustrado e chefe de redacção da Tintin. Para além d’O Que Diz Molero, foi ainda autor de Discurso de Alfredo Marceneiro a Gabriel Garcia Marquez (1984), Reduto Quase Final (1989) e Gráfico de Vendas com Orquídea (1999). À volta pelas prateleiras de um alfarrabista, devem andar Mão Direita do Diabo, Requiem para Dom Quixote, Mulher e Arma com Guitarra Espanhola. São três romances policiais trazidos a lume em 1967 e 1968 na colecção Rififi, que ele escreveu sob o pseudónimo “americano” de Dennis McShade. Estão esgotados, mas ninguém parece reeditá-los. E são pérolas raras.
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Hoje, vinte e cinco anos depois, vê O Que Diz Molero como um romance ou como um registo das suas memórias de infância?
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Há, de facto, uma certa diferença entre a actualidade e o momento em que escrevi O Que Diz Molero. Na altura, apesar de ter tido a tentação de o alargar às fronteiras do discurso universal, não sabia que estava a fazer um texto um pouco memorialista. Tinha saúde, força e vontade de dizer, mas estava sobretudo a descobrir em mim a energia da palavra. Saiu-me assim. E só mais tarde me apercebi que tinha feito um levantamento de um sítio e de um tempo que foi o meu, que estava a revelar a infância, a juventude e a minha gente. Hoje, vejo-o como uma imagem esbatida, com uma certa patine, onde eu já não estou. Hoje, já o vejo como um livro que correspondeu a um tempo meu, mas que já não é o de agora.
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Estava a escrever o romance que sempre quis fazer?
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Desde miúdo que queria fazer qualquer coisa de diferente (toda a gente tem um pouco essa mania). Queria ser um bom jogador de futebol, um bom actor, um bom realizador de cinema, e, principalmente, queria escrever um livro, pois tinha uma grande admiração pela nobreza do trabalho do escritor. Mas não queria fazer um livro qualquer, que entrasse na ordem geral das coisas. Queria fazer… o meu livro.
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Quem foram os primeiros leitores de O Que Diz Molero?
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Descobri que queria ser o primeiro leitor a surpreender-se com aquilo que eu próprio escrevia. Depois, além da Marília, a minha mulher, foram os meus amigos de infância, aos quais li o livro em voz alta. Eles ficaram encantados e só me perguntavam como é que tinha conseguido passar a atmosfera do sítio, da nossa gente. Não havia correlação directa com as personagens, mas eles reviram-se na história. Levei-o então à Bertrand, à Piedade Ferreira, um bocado a medo, porque o livro era muito anticonvencional, podia ferir susceptibilidades. O Luiz Pacheco foi a primeira autoridade literária a lê-lo. Ele viu as provas tipográficas e perguntou: “O quê, o gajo do Tintin também escreve livros?” Ficou muito entusiasmado e, dias depois, escreveu um artigo no Diário Popular. Foi aqui que tudo começou.
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O livro podia tornar-se incómodo, de facto. Que organização era aquela?
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Toda a gente queria que eu dissesse quem era a organização, mas julgo que um dos encantos do livro reside justamente no facto de não se saber quem são aqueles gajos… Tanto podia ser o KGB, a CIA, a PIDE ou a Gestapo. Ou então uma organização muito mais nebulosa, um poder oculto que requer serviços para procurar alguém que é escolhido pelo sistema como n’O Processo. O texto tem qualquer coisa de orwelliano, mas Molero tem a particularidade de participar no jogo e, ao mesmo tempo, de o desfazer.
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Costuma reler o romance?
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Tenho uma memória fotográfica. E aquilo que escrevo com uma energia muito grande fica-me estampado na cabeça. Há textos que nunca mais voltei a ler, mas que sei de cor. A O Que Diz Molero só vou lá de vez em quando, para desfazer uma dúvida, ver o que terei dito sobre isto ou aquilo, esclarecer alguém. Por acaso, agora fiz uma leitura para dar uma ajuda na tradução francesa.
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Não é praticamente impossível transpor aquela linguagem para outra língua?
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Sim, é quase impossível. Pode, contudo, tentar-se instalar um outro universo que tenha correspondência com aquele, utilizando, por exemplo, o calão de Paris. Depois disso, existe ainda o problema da desgramatização do texto.
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Apesar de todas as dificuldades, sempre são os mesmos códigos, porque julgo que houve mesmo quem tivesse tentado adaptá-lo ao cinema?
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Muita gente o quis fazer, entre eles o meu amigo Pedro Bandeira Freire. E também o José Fonseca e Costa, que até mandou vir um argumentista do Brasil, mas que ao fim de muito trabalho me disse: “Ainda vamos na sexta página e já temos meia hora de filme. Não é possível, não há dinheiro que chegue.”
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O êxito de O Que Diz Molero sufocou-o?
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Quem escreve um livro quer ter aceitação. O problema é que eu, que não tinha nenhuma relação com as zonas literárias propriamente ditas, tive mais do que uma simples aceitação. Houve uma espécie de rebentamento, de explosão, que me deixou de facto um pouco atordoado. Fiquei offside, sem perceber bem o que se estava a passar. Diziam-me que o livro trazia uma grande liberdade de escrita e um novo processo de linguagem, queriam que continuasse a escrever Moleros… Mas eu não queria repetir-me. Depois, com a morte da minha mulher, fiquei muito sozinho na vida. Fiquei sem sítio. Lembro-me daqueles dias tremendos, em casa, sem ninguém, até que saí para uma história que não tinha a certeza de querer fazer. No Discurso de Alfredo Marceneiro a Gabriel Garcia Márquez, há uma espécie de drama, de sofrimento, de fusão de elementos surreais com uma carga patética. Acho que andava à procura de um género onde conseguisse incluir isso tudo. Com Reduto Quase Final, um testemunho da minha passagem pela vida, fiz o ajuste de contas.
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Mas isso foi já em 1989 e, antes de O Que Diz Molero, também já tinha escrito três livros policiais.
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A explicação para isso está na história dos caminhos cruzados. Antes de O Que Diz Molero, escrevi três romances policias porque precisei de dinheiro. Estava a trabalhar na Íbis e, quando pedi vinde contos emprestados, propuseram-me fazer três livros num ano. Para assinar o contrato, arranjei um pseudónimo americano (tinha de ser), três capítulos e as respectivas informações da contracapa.
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Já se sentia com mão de escrita para a tarefa?
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Vinha de um trabalho de escrita muito intenso – tinha vinte anos de jornais desportivos, a escrever todos os dias, e mais umas centenas de peças no Diário Ilustrado. E, naquela altura, fascinava-me poder parodiar o policial negro e o romance americano, fingindo que era americano. São uns livros muito estranhos porque tentei fazer o mesmo que o Boris Vian, fiz homenagens, subversões, provocações, brincadeiras e desvios. O que é curioso é que, quando fui para a secretária com apenas uma espécie de bilhete de identidade do herói, não sabia o que ia fazer.
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Não sabia mesmo?
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Sabia apenas que um dos livros tinha alguma coisa a ver com o Dom Quixote, cuja versão em castelhano eu tinha lido, como mandava Gaspar Simões. Mas eu tinha a cabeça cheia de livros e de cinema. Peter Maynard vem de Pierre Ménard, a personagem de Borges que andava a escrever o Dom Quixote. E também aproveitei uns versos que tinha lido há muito tempo (“Hacer bien a villanos es hechar agua en la mar”), a partir dos quais escrevi Requiem para Dom Quixote. É quase a pedra da sopa. Depois, os policiais têm de ter uma história, algumas perseguições, os gajos que matam e os que morrem… Costumo dizer que fiz o primeiro na linha do Dashiell Hammett, o segundo na linha do Raymond Chandler e o terceiro na linha do Kafka. Escrevi-os, ganhei os vinte contos e fechei o escritório policial.
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Apesar de todos esses livros, há quem lhe chame um escritor-de-um-livro-só. Gosta da designação?
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As pessoas têm o direito de julgar o que quiserem. Acho que gostam de pensar em mim como um escritor-de-um-livro-só porque esse livro tem uma carga pessoal enorme e também porque o seu êxito me criou essa auréola mais ou menos falsa de que sou um escritor de uma única obra. O que é facto é que isso combina comigo – só quis escrever um livro. À maneira de Borges, a minha ideia era que todos os livros se podem condensar num só, uma espécie de última triagem, sabedoria sucinta das coisas. Os anteriores são, pois, livros de arranque, e os posteriores são arrancados a ferros. Já não estava diante da folha de papel com aquela vontade de descobrir o texto, como tive com O Que Diz Molero.
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Tem muita coisa na gaveta?
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Não, porque sou um dissidente daquilo que não acabo. Não sou um escritor – se é que sou um escritor… – teimoso. Cada livro tem o seu tempo de trabalho e, enquanto não chega a exaustão, escrevo, mas, quando o largo, posso estar muito tempo sem pensar nele. Acho que já não vou escrever mais nenhum, porque me falta saúde. E o livro puxa muito por mim – fumo mais, fico mais doente. Não sei o que isso significa, mas eu escrevo com o corpo. De resto, nem sei bem como hei-de situar os meus vários tempos de escrita, penso que são áreas separadas – os policiais correspondem a um período de gozo (deu-me muito prazer o lado falsificado e a questão de pôr no terreno um certo número de manias), O Que Diz Molero foi um pouco a agarrar o texto pelo pescoço, a não deixar fugir o que queria fazer, e os outros já foram quase laboratoriais. .
Esses tempos de escrita envolveram também processos de escrita diferentes?
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Hemingway dizia que, quando estava a fazer descrições, escrevia à mão, mas que, quando queria fazer diálogos, escrevia à máquina. Isto é muito curioso – e é verdadeiro. Acho que o facto de O Que Diz Molero ser tão rápido tem a ver com o ter sido escrito à máquina. A máquina acompanha a velocidade do pensamento, adapta-se ao pensamento, cuja rapidez por vezes não é possível reter. Escrevi uma grande parte de O Que Diz Molero assim, quase em estado de hipnose. Os outros livros já os escrevi à mão. Obra pequena, obra pequena… Nunca fui de obras grandes.
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Nem de livros grandes…
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Sempre gostei muito de escrever textos curtos, textos de jornais, do dia, quase em cima da hora de irem para a máquina. Sempre gostei daquele corpo a corpo com o papel.
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Porque é que nunca quis ter aquilo a que habitualmente se chama uma carreira literária?
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Fazer livros? Estou quase sempre em afrontamento com o que deve ser feito… Era necessário uma obediência a um certo número de regras, uma certa capacidade de sacrifício. E eu gosto de viver. Para escrever a vida, o escritor quase não a vive. Além do mais, quem é o escritor? Os que não chegam a ser publicados (alguns deles, porventura, interessantes)? Ou que se caucionou sem o ter merecido? Vêm dos tempos grandes monstros sagrados que devo ler? A institucionalização da literatura é algo de muito estranho. Porque o texto não é para ser instituído, o texto é para revelar.
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Nunca pertenceu a quaisquer correntes literárias.
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Não, nunca pertenci. Li os surrealistas, os neo-realistas, os poetas parnasianos… Li tudo aquilo. O que me interessava era encontrar uma linguagem própria que também é feita de acasos, que também é feita de questões de sorte e azar nas palavras.
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António Lobo Antunes é um dos seus poucos amigos que, simultaneamente, é seu colega de ofício. Como foi esse encontro?
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Uma vez, ele disse que gostava de me conhecer e, quando saiu a Memória de Elefante, fui ao lançamento do livro. A partir daí, passámos a jantar todas as quartas-feiras. Depois, a seguir à morte da minha Marília, ele foi muito importante para mim. Eu isolava-me, estava sempre muito triste, era má companhia. Ele foi buscar-me e levou-me a sua casa. Saíamos com o Cardoso Pires e com o Artur Semedo, íamos comer aqui ou ali, falávamos de literatura e de futebol. Ainda andei nisto uns meses, mas a vida muda e, por vezes, as pessoas afastam-se.
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Viveu trinta e três anos no Bairro Alto. Costuma lá voltar?
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Muito raramente. Não tenho vontade nenhuma de lá ir…
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É muito diferente do bairro que conheceu?
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Não sei se é do bairro, se é de mim… Eu mudei, fiquei mais velho, mas o bairro também mudou. Já não tem a inocência daquela época. Aquele lado efervescente das esquinas, dos cafés e dos jornais, para mim, era uma coisa diária. Era vida. A ópera, a Brasileira, a Benard, a Bertrand, as casas de fado, a Barateira, os cinemas. Agora, os amigos que mais prezo são os amigos de juventude porque esse foi um período de descoberta, no qual existia uma camaradagem muito especial, quase mafiosa.
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Passavam os dias no cinema. Que filmes viam?
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Víamos de tudo. Cresci a fugir à escola para jogar à bola na rua e ir ao cinema. Ficávamos nas sessões contínuas até à meia-noite, no Loreto, onde entrávamos dois com apenas um bilhete, a ver filmes vulgares, filmes de carregar pela boca, filmes só para entreter. “Action and More Action”, cowboys e gangsters. Depois, começaram a aparecer os Charlot e os Pamplinas. No meio disso tudo, apanhávamos grandes clássicos do cinema, películas que hoje são consideradas como tal, mas que nós não sabíamos… Eram aventuras. Era miúdo, cresci assim, a ver cinema, com o fascínio das imagens. Vivia muito em estado de cinema, de tal modo que o real, cá fora, era transfigurado pelo que via no ecrã. Havia um do meu grupo que até tinha um caderno onde ia anotando os anos dos filmes, os realizadores e a sua evolução. Qual era a fita? Realizado em 1932 por fulano de tal, com estes e estes actores. Era uma espécie de dicionário de realizadores, uma cinemateca pessoal.
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O seu pai gostava da vida que levava?
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O cinema era um bocado desprezado. O meu pai queria que eu tivesse uma profissão prática. Não queres ser mecânico? Mecânico? Eu, que nunca tinha pegado num carro? O meu avô dizia que o cinema era bonecos na parede. Era um sugeito notável, coleccionava A República nas vitrines da loja de guarda-chuvas, foi anarquista, revolucionário e talvez bombista (nunca consegui confirmá-lo). Diziam-me que tinha estado preso na Torre do Bugio, mas ele nunca me falava disso. Quando o conheci, já não queria saber disso para nada.
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Quando é que começou a ler a banda desenhada que o há-de acompanhar, depois, em várias alturas ao longo da vida?
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Quando era pequenino, vendiam-se nos passeios o Flash Gordon, o Mandrake, a revista do Fantasma. Depois, quando comecei a crescer, deixei de ligar à banda desenhada. Só lhe voltei a pegar mais tarde, por razões de ordem profissional, porque não estava nada previsto que o voltasse a fazer. Quando o Diário Ilustrado fechou, fui organizar os festivais de cinema da Casa da Imprensa, uma coisa que me deu uma trabalheira imensa por causa da censura. Um dia, telefona-me o Roussado Pinto a perguntar se eu queria ir trabalhar com ele. Fui para a Íbis, que era um mastodonte de coisas incríveis, subprodutos que vinham de Espanha, anedotas, colarinhos de beatos, Kansas City… O Tintin surgiu porque ele, além de querer ocupar as máquinas, também queria uma revista de banda desenhada. Quando a Íbis faliu, continuei a fazer a revista para a Bertrand.
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E, o futebol, ainda o vê da mesma maneira?
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Hoje há um certo desencanto, por causa destas coisas das televisões, dos negócios, das marcas, dos compadrios, das FIFAs. Do futebol, o que guardo é sobretudo o prazer de jogar. A relação mágica entre o miúdo e a bola.
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Em que posição jogava?
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Era um ponta-de-lança de estatura média, mas habilidoso. Metia golos – e também levei muita pancada, agarrava-me um bocado à bola, queria sempre entrar com ela na área. Uma vez, até fui treinar ao Atlético, um clube popular que jogava taco a taco com o Sporting e o Benfica. Viram-me na praia e perguntaram ao meu pai se eu podia ir jogar à Tapadinha, o team do atlético contra um team de miúdos com jeito (perdemos, 4 a 1). A bola ia à frente, eu ia a correr atrás dela e ouço o Baptista, que era o back direito, dizer para os outros: “Eh pá, dá um pontapé na cigarreira desse miúdo." Eu, que era de um bairro popular, não sabia o que aquilo queria dizer e, quando o jogo acabou, perguntei-lhe. “Era para ele te dar um pontapé na boca se fosses com ela para a baliza”, explicou-me ele. Gosto deste lado estilista do calão. Porque é muito imaginativo. Como alguém disse, “o futebol não é um jogo de vida ou de morte, é muito mais do que isso”.
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Muitas das suas referências literárias vêm dos tempos em que se alugavam livros nos alfarrabistas. O que lia na Barateira?
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Formávamos uma espécie de grupo de culto que lia a poesia portuguesa toda (sempre gostei mais dos poetas portugueses do que dos prosadores). Acho que até muito d’O Que Diz Molero, para além de ter a ver com a banda desenhada e o cinema, tem a ver com a carga poética que tirei das centenas de poemas que decorei. Às duas da manhã, depois do cinema, íamos para o largo dizer versos. Também gostávamos de alguns prosadores, quase nenhum deles português… Andávamos armados em franceses e americanos. Às vezes, no meio daquelas prateleiras, até descobríamos livros de agronomia e de gastronomia. Vamos levar o Pantagruel! Li coisas esquisitíssimas.
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Era uma espécie de escola paralela?
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Claro que sim. Nós andávamos no Fernando Pessoa e no Mário de Sá-Carneiro, e eles, na escola, na instituição, ainda andavam a dar o Augusto Gil e o Gonçalves Crespo. Falavam-me no Guerra Junqueira e eu fazia-lhes um discurso moderno, fora do status quo e da pauta do autor catalogado. A minha escola paralela era infinita, comparada com a escola da escola.
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Alguém lhe orientava as leituras?
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Ninguém. Era apenas o prazer de descobrir livros. Andávamos em dia com a poesia, acompanhávamos o Gaspar Simões e as páginas dos jornais. Líamos os brasileiros, até chegar à conclusão que o que eles faziam era imitar os americanos e, assim, apanhávamos os Caldwells e os Faulkners. Tínhamos a curiosidade e o ouvido atento. Estávamos sempre com as antenas ligadas. Alguém, na Brasileira, escutava o Ramada Curto falar de um autor e ia logo dizer à malta da mesa do café.
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Leituras do acaso, portanto.
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Sim, uma espécie de franco-atirador. Era ao calhas ou através de uma dica de alguém mais avisado. Havia lá um gajo, que só falava em calão (era quase um universitário do calão), que tinha uma cultura extraordinária. Era uma personagem um pouco solitária, mas, às vezes, encontrávamo-nos na esquina e ele começava a desbobinar.
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Em termos de livros, qual é que foi para si a maior revelação?
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Deixei imensos livros a meio – Guerra e Paz, que era chiquíssimo, Sheakespeare, que não me agradava muito… A maior revelação, para mim, talvez tenha sido Dom Quixote, na tradução de Aquilino Ribeiro (foi daí que tive a ideia de o ler em castelhano…). Adorávamos os livros de capa e espada de Alexandre Dumas, d’As Aventuras de Tartarim de Tarascon, que eram em folhetins. E do Júlio Verne, lido em catadupa. Tive também algumas surpresas – A Queda, que apanhei por acaso, A Viagem ao Fim da Noite, porque gostei do título. E os americanos, claro – Saroyan, Fitzgerald e muito Steinbeck (houve uma altura que tivemos mesmo uma fúria Steinbeck).
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Que viagens fez?
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Não fiz quase viagens nenhumas. E as que fiz foram quase sempre relacionadas com o futebol. Fui uma vez a Londres, enquanto estava no Diário Ilustrado, cobrir um jogo entre selecções militares de Portugal e Inglaterra. Também fui a Madrid, por causa de um Sporting-Léon, a Munique, a Barcelona, uma cidade fulgurante de cuja força me admirei. Mas eu sou sedentário, não gosto de viajar. As minhas viagens são todas como as de Céline, pela imaginação. Além disso, não preciso de ir aos sítios – tenho fotografias, relatos, romances, filmes, mapas… Tenho noção de como as coisas são e como funcionam. Sei, por exemplo, as ruas de Nova Iorque porque tenho a memória do cinema de Raoul Walsh e de Howard Hawks. Claro que, como os espólios não são completos, apenas percebo o que é possível perceber. Mas, afinal, tudo na vida é um bocado arbitrário e ninguém pode ter a bilioteca total para saber tudo. Uma vez, perguntaram a Borges sobre a sua tarefa com a literatura. “A minha tarefa”, disse ele, “não seria particularmente difícil, bastar-me-ia ser imortal para a realizar.”
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Prefere guardar essa memória mediada dos lugares?
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Acho que sim. De qualquer modo, também já não vou ao cinema. Nos últimos vinte anos, só ia ao Quarteto, com o livre-trânsito que o Pedro Bandeira Freire me arranjava. Quando ele saiu de lá, deixei de ir. E não me custou nada. Sou capaz de viver com uma preguiça quase permanente. Tenho a qualidade de ser capaz de estar, sem fazer nada, a fumar e a beber café, a ler um livro antigo que me apetece reler. Falo com a Rita [a filha], falo com a Dulce [Dulce Cabrita, a mulher] e já me chega. É a minha vida – e assim vai ser até ao final. Mas agora, de repente, apareceu-me muita coisa ao mesmo tempo. No outro dia, telefonaram-me a perguntar se queria desempenhar o papel de um detective particular num filme policial. Além do caldeirão dos vinte e cinco anos de O Que Diz Molero, também me querem em Bordéus e em Paris… Mas eu não falo bem francês, nem quero falar línguas estrangeiras, acho que sou daqueles escritores de raízes que só falam a própria língua.
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Mas lê francês…
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Sim, mas não falo quase nada. Falo melhor inglês. Isto é, o “americano” que aprendi nos filmes.
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“A época não era melhor, nós é que tínhamos juventude.” Esta frase de Reduto Quase Final não pode vir de um nostálgico, porque estes acham sempre que o passado era glorioso em si mesmo.
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Não sou, de facto, um nostálgico. Vivi bem o tempo que passou, não o podia ter vivido melhor e fiz quase sempre o que queria. O passado fica, porém, apenas como passado. Nunca quis aquela vida das nove às seis, tive guerras de meia-noite, ameaçavam-me com processos e tudo, mas acabavam por desistir. Situações de sorte… Este estatuto do gajo que escreveu O Que Diz Molero dava um bocado para tudo.

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