7.1.08

Luiz Pacheco: o testemunho de Vítor Silva Tavares

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Requiem para um inimigo
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Pacheco reconcilia-me com a permanência e a necessidade do estilo.
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Como Jarry em Ubu e César Monteiro em João de Deus, desdobrou-se Luiz Pacheco em Pacheco, com artigo definido. E de tal forma, tão vincado à caricatura, que a personagem abafou a um tempo o homem (sem qualidades?) e o escritor, ou escriba de circunstância. A personagem, essa, desenhou-se inconfundível entre gentes (de sobremodo "marginais") e lugares outros da excelência cosmopolita - tugúrios do Bairro Alto, de Massamá, das Caldas, de Setúbal, de Braga e do Limoeiro. Breve, o andarilho, o vadio e pedinte, o ávida-vintes, o linguareiro temível, o pai-chocadeira, o arrebenta, o libertino, o libertário se deu ao diz-se, à lenda, ao muito anedótico. Um pouco como, nos seus tempos, Bocage ou Gomes Leal, que a arraia-miúda sabia serem poetas, vá lá, extravagantes nas suas faltas de preparo e bem assim nos seus públicos infortúnios e verrinas.
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Certo que o pesadelo concentracionário da era salazarista e o cinzentismo da praça literária, esta ao fim e ao cabo conformista e conformada, mais fizeram recortar a iconoclastia do guerrilheiro, extensível, como não podia deixar de ser em Pacheco, às glórias (poucas) e vicissitudes (muitas, e das que vão matando) da sua vida íntima, tão contrária ainda por cima aos bons usos e costumes da hipocrisia social, que ele combateu com fúria e ácido.
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Raros, em Portugal, os escritores que tão fundamente entrosaram vida e literatura. Raros também, por isso mesmo, aqueles que souberam tocar, com tão absoluta veracidade, as cordas mais sensíveis do sentimento humano. Leia-se, releia-se, A Comunidade (ou Os Namorados, exemplos à mão da memória) e eis que, de anedotário faceto como da aura sempre por ele negada de "escritor maldito" (quando o que havia era, e é, "escritores mal escritos"), ressalta então o homem que se despoja, que se desnuda até ao mais fundo da crueldade e do amor. Para exemplo. Nada disto seria de preservar, se não fora a maestria, a cintilância, com que o Luiz Pacheco laborou, elaborou, a língua escrita-oral portuguesa, as "audácias" pessoais nela contidas para maior afirmação e esplendor do seu, afinal, classicismo. Ler o Luiz Pacheco reconcilia-me com a permanência e a necessidade do estilo, tão maltratado este entre as letras funcionárias.
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Do editor que ele foi (sem recursos financeiros, mas com pontaria de conhecedor, a sua Contraponto cumpriu-se como aventura intelectual à revelia de negócios e oportunismos) só uma palavrinha: reconhecimento. Neste ponto, não posso deixar de ter sido seu amigo (por ele conheci Cesariny e Herberto), eu, que lá perdi agora - e como o lamento! - um dos meus mais ferozes e dedicados inimigos. Por admirações mútuas, por ciúmes, por amores, por dissonâncias existenciais.
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Não estou só. Ao perder um tal inimigo, mais desamparadas ficam as ronceiras letras portuguesas que inundam escaparates e supermercados.
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"A crítica - eis a razão da nossa permanência", frase de António Maria Lisboa que o Pacheco chamou sua para a contracapa da Crítica de Circunstância que me honrei de publicar e a PIDE sacou, num ápice.
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Estará, na circunstância, tudo dito, que é nada.
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[Vítor Silva Tavares, Público, 7/1/2008]

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