31.5.07

Os Livros no Parque: Eduardo Prado Coelho

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A Feira do Livro

Há Feiras e há Salões. São coisas diferentes. O Salão do livro é um espaço fechado, onde às vezes é preciso pagar à entrada, e que tem um labirinto de corredores por onde se distribuem stands. A Feira, tal como a memória lisboeta a inscreveu numa determinada tradição, é algo de aberto, de manifestamente solar e festivo, disposto a aceitar a presença do sol e o olhar curioso das pessoas que passam. Conheci-a na Avenida da Liberdade e agora no Parque Eduardo VII. E devo dizer que me afeiçoei à fórmula, sobretudo na versão consideravelmente melhorada dos últimos anos. É claro que se pode ir mais longe, mudar concepções e visuais, estabelecer novas linhas de força, definir melhor os espaços. Mas o essencial é que a Feira do Livro seja um acontecimento da Primavera que se passa na rua, e que por algumas semanas torna um lugar marcado por certos hábitos (uns bons, outros menos bons) num lugar diferente. Apenas peço que haja continuidade neste trabalho, que as equipas não mudem todos os anos, que as coisas se comecem a preparar com antecedência, e que se imponham formas de intercâmbio com o estrangeiro. Mas não domestiquem a nossa Feira do Livro transformando-a em mais um salão estereotipado num parque de exposições!
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[in Os Livros no Parque, editoras Afrontamento, Antígona, Assírio & Alvim, Climepsi, Cotovia, Meribérica-Liber, Relógio D’Água e Teorema, 2004]

Os Livros no Parque: Manuel Portela

Talvez se possa climatizar livros e leitores. Abrigá-los da chuva e do vento. Controlar a humidade relativa do ar. Prever os percursos e as paragens. Tornar menos aleatórios os encontros. Enfim, gerir melhor o comércio. Talvez. Mas são também os locais que fazem as feiras. O declive que os pés reconhecem no terreno. A incidência da luz nos transeuntes. O cheiro das árvores de repente molhadas. O calor do sol num dos lados da cara. O vento a levantar-se ao final da tarde. O rosto do livro contra o céu nocturno. Uma lufada fria a tactear a nuca. As vozes que o ar leva e traz nessa caminhada. Serão menos do dia os livros do dia. Saldadas as sensações de serem procurados naquele lugar. Mas talvez se possa climatizar livros e leitores, no Parque Eduardo VII.
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[in Os Livros no Parque, editoras Afrontamento, Antígona, Assírio & Alvim, Climepsi, Cotovia, Meribérica-Liber, Relógio D’Água e Teorema, 2004]

30.5.07

Jorge Silva Melo


Para quem perdeu, pode ver aqui o último Câmara Clara, que teve como convidado Jorge Silva Melo, a propósito do seu Século Passado, editado pela Cotovia. Como sempre, vale a pena ouvir JSM.

Depois da Praia

Chegou o Ex-Ivan Nunes, um semi-blog do artista anteriormente conhecido como Ivan Nunes.

29.5.07

Pechinchas na feira


Nadja, de André Breton, a 5 euros na Estampa.

Os Livros no Parque: Frederico Lourenço

Mesmo quando chove (e já tive várias experiências dessas!), a Feira do livro de Lisboa no Parque Eduardo VII tem uma magia única. Quando está sol então, e os jacarandás formam aquela nuvem de roxo por cima das cabeças de todos, passa-se ali qualquer coisa que não andará muito longe da essência da felicidade. A Feira que me ficará sempre na memória é a de 1984: faz este ano 20 anos que lá comprei o Novo Testamento em grego (livro que ainda tenho e que considero indispensável); comprei pela primeira vez os Estudos de História da Cultura Clássica de Maria Helena da Rocha Pereira. Hoje tenho vários exemplares das diferentes edições porque esse livro passou, muitos deles autografados pela autora com dedicatórias amáveis; mas esse primeiro exemplar, comprado numa tarde de primavera com a excitação antecipada de ir ouvir a Mara Zampieri no Coliseu na Ana Bolena… magia pura. Hoje, como autor, a Feira do Livro de Lisboa é para mim o ponto alto do ano editorial: é aí que conheço leitores e encontro colegas de ofício. E passam-se coisas emocionantes naquele Parque Eduardo VII que nunca aconteceriam noutro sítio: o José Saramago a aparecer no stand da Cotovia, por exemplo, para comprar um exemplar da Odisseia.
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[in Os Livros no Parque, editoras Afrontamento, Antígona, Assírio & Alvim, Climepsi, Cotovia, Meribérica-Liber, Relógio D’Água e Teorema, 2004]

28.5.07

Os Livros no Parque: Jorge Silva Melo

Eu só gosto do Parque Eduardo VII em Maio, nunca lá vou noutra altura. Mas gosto de subir e de descer, sobretudo ao sábado e ao domingo, com gente que nunca vi nas livrarias, gente que mexe em livros, dicionários tantas vezes, livros do dia, livros mais baratos, gente, tanta gente, fico sempre com a sensação que há pessoas, que os livros servem as pessoas, que os editores são gente honesta que quer um mundo melhor, gosto de coleccionar os catálogos, de marcar com cruzinha os livros a comprar, de nem sequer comprar esses mas outros que me aparecem, esquecidos, de encontrar livros insuspeitos que nem sabia estarem editados, gosto de pedir autógrafos, há muitos anos foi lá que falei com a Maria Judite de Carvalho e lhe disse quanto a admirava, gosto de ver escritores sentados, gosto dos altifalantes a anunciarem escritores e descontos, gosto das farturas que ainda o ano passado engorduraram um livro de poesia acabadinho de comprar e até carote, não me tirem a rua dos livros ao sol, não me fechem a Feira do Livro, deixem-me, uma vez por ano, passear pelo Parque Eduardo VII de todos os jacarandás, ao cair da noite, pela fresca, deixem-me encontrar os amigos, são cada vez menos!, deixem-me queixar-me de já não ter dinheiro, nem espaço em casa para mais papelada, deixem-me voltar a casa com quilos de sacos, deixem-me a minha Feira do Livro onde ela é, é onde todos os anos eu respiro um mundo que talvez fosse maior, com mais gente, mais livros, histórias, poesias, gente a subir e a descer aos sábados à tarde, com tanto calor. E um dia gostava de filmar, porque não filmar a descoberta do amor entre um rapaz de uma barraquinha de livros em segunda mão e uma jovem escritora neurasténica, rapariga loira com as suas singularidades. Ou vice-versa, em Maio, no Parque Eduardo VII.
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[in Os Livros no Parque, editoras Afrontamento, Antígona, Assírio & Alvim, Climepsi, Cotovia, Meribérica-Liber, Relógio D’Água e Teorema, 2004]

Os Livros no Parque


Todos os anos por esta altura se levantam vozes que querem por força meter a Feira do Livro de Lisboa num recinto fechado, suponho que na FIL (este ano ainda não dei por nada, não se fala da feira nem para dizer mal). Esta ideia vai contra tudo aquilo que é a nossa feira do livro: uma festa ao ar livre, sem pagar para entrar, onde se compra livros mas também se passeia, numa zona central da cidade. É também uma excelente oportunidade para passear no Parque Eduardo VII à tarde e à noite, coisa que só se faz nesta altura. Lisboa tem um excelente clima nesta época do ano e há que aproveitá-lo, mesmo que por vezes possa estar fresco ou cair uma chuvinha, mas isso também nunca matou ninguém. Colocar a feira num recinto fechado asséptico e com luz artificial e ir para lá numa tarde primaveril é criminoso. Depois queixam-se que as pessoas se enfiam todas nos centros comerciais nos fins-de-semana…



Na Feira do Livro de 2004 algumas editoras juntaram-se e fizeram um livrinho, que ofereciam, no qual alguns autores escreveram um pequeno texto em defesa da feira no Parque Eduardo VII.


Durante os próximos dias vou aqui deixar alguns desses textos, porque realmente não podemos deixar que nos tirem a feira do ar livre.

25.5.07

A doce praga dos jacarandás

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Vem hoje no DN esta notícia verdadeiramente extraordinária:
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"Doce praga" dos jacarandás irrita automobilistas
Quase todos os lisboetas, até os mais distraídos, reparam quando os jacarandás estão floridos. O espectáculo dura só duas ou três semanas - entre finais deste mês e meados do próximo -, altura em as árvores libertam as suas flores sobre as avenidas, praças ou jardins de Lisboa.Tapetes lilases cobrem as ruas da capital, mas este fenómeno provoca alguma irritação a quem vive ou trabalha na capital: "É uma praga, embora seja uma praga doce", desabafa Marta Maldonado, moradora na Avenida D. Carlos I. Nos últimos dias, a residente do n.º 99 da avenida sai sempre de casa munida de esponja ensopada em detergente. "Para tirar isto é preciso uma boa esfregadela", explica Marta, apontado para as flores que secaram no tejadilho do seu automóvel. E é por essa mesma razão que António Fortes, empregado da Cafetaria El Rey D. Carlos, evita estacionar nesta altura do ano debaixo das árvores alinhadas na Avenida D. Carlos I. Na maioria das vezes é mal sucedido e não tem outra alternativa senão transformar o seu automóvel no alvo certeiro dos jacarandás: "Reconheço que a cidade fica deslumbrante com as copas floridas, mas é muito irritante encontrar quase todos os dias manchas de flores ressequidas no meu automóvel", admite, justificando que, por mais que limpe as nódoas, estas nunca desaparecem por completo.Quem diria, portanto, que os jacarandás de Lisboa têm um lado negro (ou seria melhor dizer lilás)? Mais do que isso é um assunto que divide os lisboetas. Há quem defenda que a espécie deveria estar confinada aos jardins e praças da capital: "Só assim se poderia evitar que as ruas e os carros ficassem sujos", argumenta António Forte. Outros há que nunca irão concordar com esta solução. "É o preço que se paga para termos a cidade mais bonita por algumas semanas", justifica Graça Valente que há 47 anos vive no Bairro da Madragoa. Estar contra ou a favor dos jacarandás não impede os automobilistas de terem de tolerar esta "praga doce" por mais algumas semanas. "É sempre possível encontrar o lado positivo desta questão", explica Graça Valente, recordando que, em mais nenhuma época do ano, os lisboetas andam "com a cabeça no ar" à descoberta das copas lilases. Mas a pensionista de 66 anos reconhece que se tivesse de estacionar todos os dias o seu automóvel na Avenida D. Carlos I, "talvez" não fosse tão optimista.
[Katia Catulo]
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Chegámos pois ao ponto em que as pessoas acham que esta "espécie deveria estar confinada aos jardins e praças" para "evitar que as ruas e os carros ficassem tão sujos". O que interessa é ter o carro bem limpinho, as árvores cortem-se todas, só estão a chatear!

Pechinchas na feira


Raio de Luar e Os Doutores, a Salvação e o Menino Jesus, ambos de Luiz Pacheco, a 2,99 euros cada na Oficina do Livro.

24.5.07

Feira do Livro

Começa hoje, às 18h, a Feira do Livro de Lisboa e aparentemente as notícias não são muito animadoras. Há menos pavilhões, o apoio camarário diminuiu, o pavilhão que estava habitualmente no topo da feira desaparece, dando lugar a uma tenda mais pobre e a programação é muito fraquinha. E pelo que li hoje no DN, não há casas de banho (!!!), ainda há restos de um estaleiro das obras do túnel e o apoio de restauração é dado por duas roulottes que vendem água a 1,5 euros. A própria publicidade é quase inexistente. Grave é também o cancelamento do país-tema da feira, o Brasil, ao que parece por falta de interesse do lado brasileiro.

Enfim, de um modo geral nota-se um grande desprezo por uma iniciativa que devia ser apoiada e acarinhada, como uma grande festa de Lisboa, cidade onde os grandes eventos culturais não abundam.

Apesar de tudo há algumas boas notícias: a feira regressa à zona sul do Parque, o que deverá aproximá-la das pessoas e terá uma nova configuração que deverá facilitar a circulação entre os stands. E depois, claro, o principal: muitos livros (80 a 100 mil), ao ar livre e com descontos tentadores.

23.5.07

A Feira em 1982

[Foto tirada do site da Feira do Livro de Lisboa]

A Feira em 1974

[Foto tirada do site da Feira do Livro de Lisboa]

A Feira em 1980

[Foto tirada do site da Feira do Livro de Lisboa]

22.5.07

Começa já depois de amanhã

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“Tudo leva a crer que existe um determinado ponto do espírito donde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo, deixam de ser apreendidos contraditoriamente. Ora, em vão procuraríamos para a actividade surrealista outro móbil além da esperança de determinação deste ponto.”
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[André Breton, in Manifestos do Surrealismo, Moraes]

21.5.07


[Marcel Duchamp, L.H.O.O.Q., 1919]

18.5.07


O INVENTOR DO SUBMARINO

(publicada originalmente do Diário de Lisboa de 7 de Novembro de 1968)

Pegou-me na mão e, de mansinho, experimentou repetir o convite: «Vá, anda ver!» Eu, que o enxotara já duas vezes, desci do Cáucaso, levantei os olhos do livro (Nouvelles Asiatiques, Gobineau) e, com eles, fui coroar de ternura a cabecita de cabelo «à bestla», que, a meu lado, acenava, a pedir que sim.
Na banheira, o H-327 derivava lentamente entre duas águas. Maravilha! Senti – que querem que lhes faça! – um sincero grande orgulho. Eu era o pai do inventor do submarino! Quando pus os olhos nos olhos do Inventor, este semi-sorria, corado de prazer.
H-327: um tubo de vidro transparente de quase dois palmos e de diâmetro igual ao de uma cápsula de garrafa de cerveja («carica», no especializado vocábulo dos inventores). Onde desencantara o Inventor o tubo foi coisa que eu nunca quis apurar. De rãs salteadoras a despertadores de caixa de latão desventrados, de frascos de boca larga com cabeçudos nadadores, mais pequenos que fiapos, a escreverem continuamente Zés (zzzzzz) na água suja, em rápidos, eléctricos movimentos de corpo, a um estranho dínamo manual que fazia tfft-tfft-tfft a cada faísca que saltava dentre as escovas, o Inventor habituara-me a todos os aprestos de que o seu génio criador necessitava. Mas o H-327, assim à deriva sob meio palmo de água, era positivamente de tarar!
O inventor ajustara-lhe duas rolhas duas rolhas dentro e rolhara-o, nas extremidades, com outras duas. Criara, deste modo, três compartimentos no H-327. O compartimento central abrigava a tripulação: duas moscas desasadas. O comandante-mosca (ou a mosca-comandante) distinguia-se do resto da tripulação (simbolizado, muito inteligentemente, pela outra mosca) porque o Inventor lhe pintara um sim-senhor de vermelho. Os compartimentos das extremidades constituíam os depósitos do lastro: água e, para melhor contrabalanço, algumas tachas.
A tripulação parecia atenta (já estaria meio asfixiada?) e o Inventor resolveu experimentar, mais uma vez, a estabilidade em imersão, do H-327. Arregaçou a manga, meteu a mão, em espátula, na água e desencadeou na banheira uma tempestade pior que a que meteu a pique a Invencível Armada. Aí é que o meu entusiasmo abandonou todo e qualquer paternalismo, para se tornar um entusiasmo de igual para igual. O H-327 era simplesmente formidável!
A banheira deixou de ser a banheira. Passou a Base Naval Coelho da Rocha (por esta altura nós morávamos em Campo de Ourique, na rua do mesmo nome). Eu corri à colecção do Paris-Match, que tem muito bom papel para aviões, e em três tempos fiz duas esquadrilhas de combate anti-submarino. O Inventor, entretanto, protestava que a banheira não podia ser a Base Naval Coelho da Rocha, que era, evidentemente, o alto mar. Eu não o contrariei, confiado como estava na superioridade da minha aviação.
Ao terceiro bombardeamento, com o mar muito agitado pelo Inventor, o H-327 foi atingido por uma bomba das grandes: mola de roupa de arame. O submarino virou-se sobre si mesmo. O comandante sacudiu o sim-senhor vermelho e firmou-se melhor nas patinhas. A mosca-marinhagem não dava sinal de vida.
Eu perdera, contudo, um avião de observação, que, numa vrille desastrada, fora cair na base, perdão, no mar. Soraya, cujo retrato, por um feliz acaso, coincidira com o verso de uma das asas desse avião, sorria-me de dentro de água, já muito desbotada.
O Inventor rejubilava com a estabilidade do H-327, que atravessara, bravamente, a terrível prova. E os bombardeamentos continuaram pelo que restava da tarde. Eu e o Inventor revezávamo-nos na produção ininterruptas de tempestades e de ataques aéreos. O H-327 sofreu tratos em fim: o tremendo impacto das bombas de profundidade (para o delirante efeito, lindas grageias de sonífero furtadas da farmácia da velha), o tiro de salva de baterias costeiras cujo longo alcance fora engenhosamente garantido por duas ligas de velhota, enfim, um sei-lá de truques bélicos, qual deles o mais arrasador. Nada! O H-327 era um grande vaso de guerra.
Já com a batalha a passar-se à luz da electricidade, o Inventor, que estava, nessa altura, «ao submarino», pediu tréguas para trazer o H-327 à superfície. Concedidas por dez minutos.
E foi durante esse curto período de tréguas que a gloriosa carreira do H-327 se viu abruptamente cortada pela entrada prosaica da nossa velhota (minha mãe e avó do Inventor). Cansada de dar ao dedo na agá-césar o dia todo, por conta de Matos & Carthó, Lda., Arameiros Reunidos da Pampulha, a Joana não consegui sintonizar o comprimento de onda altamente poético que eu e o Inventor estávamos a emitir.
– Tu já prà cama, e sem jantar! E tu (era eu…) devias ter vergonha ! Que linda educação estás a dar ao teu filho!
Cabisbaixos, eu e o Inventor separámo-nos com um magoado entreolhar de solidariedade.
Por essas onze horas, com a Joana a cabecear sobre mais um capítulo da Vida e Aventuras do Padre Quilhó de Alvarado, levei uma bucha, pé ante pé, ao Inventor.
Como se uma mola o mudasse, truca, de posição, o Inventor sentou-se na cama, esfregou energicamente os olhos e fez questão de saber: «Então, gostaste do H-327?» Passei-lhe a côdea. «Muito! Mas já estou a pensar no H-1000…» Trincadela e pergunta: «No H-1000?» Festa na cabeça e resposta: «Sim! No H-1000, com motor atómico!» O Inventor pôs-se de pé na cama. «Motor atómico!» Obriguei-o a deitar-se e não levei muito tempo a satisfazer-lhe a expectativa.
«Imagina um submarino como o H-327, mas com um compartimento extra. Nesse compartimento mete-se uma pastilha de Alka-Seltzer. O H-1000 submerge. Tira-se a rolha à sala do reactor, que é a da pastilha, claro… Que achas que acontece?»
Não sei se o Inventor conseguiu dormir naquela noite. Eu não. Nem o Gobineau me fez esquecer o longo abraço quente de admiração com que o Inventor saudou, na pessoa do seu pai, o aparecimento no horizonte dos génios, dessa nova maravilha: o H-1000.
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[Alexandre O'Neill, in Crónica Jornalística do Séc. XX (org. Fernando Venâncio), Círculo de Leitores, 2004]

17.5.07

Rádio Macau


[Anzol, O Elevador da Glória, 1987]

16.5.07

Pacheco Pereira e Jorge Silva Melo

Está já disponível no Abrupto o texto de JPP sobre o Século Passado de Jorge Silva Melo, publicado no último Ípsilon.

11.5.07

EM SUMA
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Um a um foram saindo de cena
os companheiros. Partiam, com a tarde,
para fins empobrecidos,
na rota dos eleitos para filhos e despesas.
As noites faziam-se livrescas,
estendiam sobre mim o seu império
de silêncios e desfalques.

Entretanto, engrossava o meu diário
de rasuras, de cálculos moídos,
partilhando por verrinas e recados
sem resposta. Bebia o desalento
por canecas de latão, corria
as persianas. É muito pouca sorte.

Os versos, com o tempo tornavam-se mais longos,
cresciam para trás, para fora
dos cadernos, ocupavam a minha vida
tal a morte na semente de madeira.
Afeiçoava-me isso sim à solidão, contava
o negativo dos afectos, protegido na cabeça por um chapéu de feltro;
pois essas são as coisas e as coisas
que ontem nos pareciam boas
não existem.

[José Miguel Silva, in Vista para um Pátio Seguido de Desordem, Relógio D'Água, 2003]

10.5.07


[Gerard Castello Lopes, Lisboa, 1956]

9.5.07

Manhã Submersa


A não perder também a Manhã Submersa, de Lauro António, no Quarteto.

O Meu Tio





A não perder, no Nimas, o genial “O Meu Tio” de Jacques Tati, uma parábola sobre as modernas sociedades de consumo (em 1958). Tati mostra-nos o choque entre um mundo antigo, imprevisível, humano, com vizinhos, cafés, pessoas na rua, vendedores de fruta, lixo, cães e um mundo moderno ascético e desumanizado onde tudo está previsto e mecanizado.




Monsieur Hulot, vive e é um produto do primeiro mundo enquanto a sua irmã, cunhado e sobrinho vivem no segundo e para lá o querem levar. Madame Arpel diz a certa altura “Do que o meu irmão precisa é de um objectivo. De um lar. De tudo isto” Para isso ela procura “juntar” o irmão com a sua solitária vizinha, também ela uma mulher moderna, e um emprego na fábrica de plásticos do marido. Claro que tudo isto não vai dar bom resultado e sucedem-se as mais variadas situações hilariantes já que Hulot subverte todo o conceito moderno ao introduzir humanidade e perturbação no novo mundo. Hulot sistematicamente usa erradamente os objectos, aborrece-se de morte no monótono trabalho na fábrica e entra em choque com um mundo que não entende nem o entende a ele.


Apesar de tudo O filme acaba por nos dar uma nota positiva ao acabar por aproximar o sobrinho de Hulot (que sente uma atracção irresistível pelo mundo em que vive o tio) e o seu pai.

8.5.07

m.

É muito curioso este pudor em escrever a palavra merda, substituindo-a por um inócuo m. embora em pelo menos uma situação tenham mantido a palavra, não sei se por distracção. E também há para ali uns c. numa história hilariante sobre um livro para crianças. Mas porque quer o Correio da Manhã entrevistar Luiz Pacheco se depois lhe censura certas palavras?

Luiz Pacheco: entrevista ao Correio da Manhã

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Luiz Pacheco deu recentemente uma entrevista ao Correio da Manhã. Não foi das mais interessantes que li, muito por culpa da entrevistadora, Miriam Assor. Houve uma tentativa por parte de Miriam de usar uma linguagem castiça (“mandou o curso dar uma curva ao bilhar russo”) e de forçar a resposta polémica. Ainda assim, uma entrevista com Luiz Pacheco é sempre interessante. Foi publicada a 8 de Abril e reproduzo-a aqui na totalidade:

Os óculos pesam nos olhos que cegaram. À cabeceira, o jornal ‘Avante’ e um livro de José Gomes Ferreira não são bibelôs, mas companhias. Luiz Pacheco, criatura de inteligência rigorosa, de lucidez sobrenatural, um livre pensador que disse e diz coisas que não são fáceis de serem ditas, está preso a um cadeirão, tem o robe vestido, o aquecedor ligado e uma manta para o frio não lhe magoar o esqueleto. Nasceu em Lisboa, na Rua da Estefânea, a 7 de Maio de 1925, pai de oito filhos – frutos de muitos amores, na vida escolhida, que foi dura por prazer, só fez o que bem entendeu.

O Estado Novo prendeu-o por politiquices e por ter amado menores. Frequentou o curso de Filologia Românica na Faculdade de Letras e a meio mandou o curso dar uma curva ao bilhar russo. Entretanto, a Inspecção de Espectáculos admitiu-o como agente fiscal, mas sedentarismo não combinava com o seu feitio. Preferiu a situação que considera invejável: desempregado. Depois, funda a editora Contraponto onde a corrente surrealista viu muitos dos seus autores publicados. Crítico literário e cultural, tradutor, colaborou em diversos jornais e revistas, ‘O Globo’, ‘Afinidades’, ‘Seara Nova’, ‘Diário Popular’. A sua escrita caracterizada de irreverência e de poesia esbofeteou a torpeza intelectual e desafiou o lápis azul da censura salazarista. Luiz Pacheco, que, em tempos, se fez sócio do Benfica para ir aos bailes e do Sporting para ir à natação, já não dança e não aprendeu a nadar. Apesar de ter andado perto do fundo, acaba por vir sempre à tona e ao seu ritmo.


Tinha dito que não saía do lar do Príncipe Real. Afinal, enganou-se. Vive com o seu filho.

Um gajo também se engana! A vida nos lares é uma espécie de regimento. Horários. E mais horários. E eu estive em três. O pior era a convivência com os moribundos e as moribundas. Deprimente. Os tipos iam buscar os velhos às camas e espetavam com eles num buraco a que chamavam sala do convívio. Qual convívio? Convívio nenhum! Velhotes com os olhos fechados e outros que estavam nas últimas. Ah... e havia um animador que se punha a contar de um até ao número dez. Quando a gente pensava que o tipo ia fechar a goela, desatava a dizer a numeração em forma decrescente. Ele fazia coisas incríveis! Mandava pôr a mão para cima, para trás, para os lados. Eu sei lá. O último lar era muito mau. Tinha lá uma mulata que era cleptomaníaca. Roubou uma velha muito afanada e eu também fui roubado.

O Luiz é que não está nada afanado...

Eu não estou afanado? A miúda deve estar a brincar! Eu não estou nada bem. Tenho muitas doenças, talvez umas vinte e três. Agora tenho uma m. chamada incontinência. Para um gajo é muito mau andar de fraldas. Mas a vista é a pior das mazelas.

Se fosse menos teimoso já tinha sido operado.

Não conte com isso! Tenho medo. E não é da anestesia. Medo das consequências. A merda da operação pode provocar um acidente cardiovascular e já viu o que era? Dizem que é coisa muito simples, mas isso são conversas. Nessa eu não caio!

Voltar a ler não é um estímulo?

Oh miúda, eu já li muito. Nem queira saber o que eu já li. Agora é a minha filha que me lê os artigos de jornais e algum livro que eu queira ler. Ocupo o raio do tempo a ver a RTP Memória. Estou a ver coisas que nunca tinha visto. Como por exemplo, o Júlio Isidro, o Zip-Zip. Gosto de ver velhadas. Entretenho-me com o humor fabuloso do Vasco Santana, do António Silva. O Solnado é uma merda. Uma invenção. Um disparate. O Herman José é diferente. Basta ser de origem alemã para saber o que está a fazer .

O melhor aluno do Liceu Camões gosta de velhadas...

Não me faça rir. Mas fui o melhor daquela malta toda. Entrei em 1936 e fiquei lá oito anos. Sentava-me sempre na carteira da frente, porque os meus olhos já eram dois sacanas. O avô desse tipo chamado Eduardo Prado Coelho foi meu professor. Nós cagávamo-nos no gajo.

Quem eram os seus colegas?

Lembro-me do José Manuel Serra, que foi director do Teatro Nacional de São Carlos, Lobo Saias, que chegou a ministro, e outros.

Os liceus não eram mistos, portanto, miúdas não eram peras doces...

Imagine que nem podíamos chegar ao pé de uma escola feminina. Quando chegou a altura da universidade, o convívio não foi fácil. Não estávamos habituados. Pedir um lápis emprestado era cá uma trabalheira. Só para não haver contacto, deixávamos cair o raio do lápis ao chão.

Entretanto, os contactos melhoram... esteve preso no Limoeiro devido a aventuras amorosas.

Prenderam-me por razões políticas e por ter desflorado umas garotas que eram menores. Mas atenção: eu também era menor! Uma ocasião foram duas irmãs ao mesmo tempo. Foi cá uma chatice... Antigamente, rapazes e raparigas faziam o que hoje fazem, mas com a diferença: não tinham o à-vontade que existe hoje. A pílula foi a estrondosa revolução. Ouvir dizer que, até, os homens já podem tomar essa m. Eu nunca tomei. E sou contra o aborto. Hoje em dia as garotas têm muitas facilidades...!

Um rol de contraceptivos e a pílula do dia seguinte

O que é isso? O comprimido do dia a seguir à cegada?

Sim. É contra o aborto e a favor da despenalização?

É claro! Prender moças é um autêntico disparate. Mas há malta que diz que aborta porque rejeita ter filhos indesejados. Ouça cá uma coisa: uma rapariga que se deita com um rapaz sabe do risco. E há outra malta que diz que não consegue criar filhos. Mentira. É só conversa. Eu sem cheta, desempregado, tenho oito filhos. Uma vez, fui deixar um filho à Casa Pia. Se os ‘gansos’ eram bem tratados? Coitados. Aquilo era uma miséria.

Voltando à prisão. Como era no Limoeiro?

Uma prisão para os gajos que esperavam julgamento. Havia batota que não era a feijões, mas a dinheiro. Estava lá um enfermeiro tarado que vendia penicilina misturada com água. O refeitório era umas mesas corridas e havia um tipo que distribuía a comida. Os acordos davam direito ao prato ficar mais cheio. Naquela merda havia estratos sociais. A Sala dos Menores, a Sala dos Primários, para os estreantes, a Sala Comum, que era para a maralha, e a Sala dos Bacanos, onde estavam aqueles que tinham conhecimentos fora da prisão. Como eu. Da segunda vez que estive dentro, o Artur Ramos telefonou ao pai, que era director-geral da Penitenciária e pôs-me cá fora.

Um homem que nunca gostou de regras nasceu no seio de uma família de militares...

Não venha com as perguntas feitas de casa. O meu avô materno era capitão-de-mar-guerra, engenheiro maquinista, e o meu avô paterno, coronel da artilharia, dirigiu o Arquivo histórico-militar. Eram militares, mas pareciam ser outras pessoas. Tinham boa cara. O pai do meu pai, aquando da primeira incursão monárquica, comandada pelo Paiva Couceiro, foi a Chaves dar umas bombadas nos canhões e teve de fugir. O meu pai estava a tirar o curso na Faculdade de Letras para ser diplomata, mas como aconteceu a Primeira Grande Guerra, a diplomacia foi para o galheiro. Não acabou o curso. Nem eu.

Por razões diferentes?

Sim. Os professores na Faculdade de Letras eram uns chatos. Excepto o Vitorino Nemésio (que me deu 18 valores) e o Delfim Santos. Nunca engraxei o Nemésio, eu não era igual ao Urbano e ao David. Mas espere aí, deixe-me falar do ano que antecedeu a faculdade. Em 1943, quando acabei o liceu, o meu pai disse que não tinha dinheiro para eu estudar na Faculdade. Falou com o professor João de Brito, que me deixou assistir às aulas. Eu era um aluno fantasma. Não me perguntavam nada, o que era maravilhoso. Nos intervalos ia para a biblioteca. Devorei Gil Vicente, Garcia de Resende, Fernão Lopes e outros. Por essa altura comecei a dar explicações. Portanto, aprendia e ensinava. Foi um ano em cheio! No final, fiquei muitíssimo bem classificado no exame de admissão à Faculdade de Letras de Lisboa, no Curso de Filologia Romântica, e consegui ficar isento das propinas.

Saiu da faculdade e, em 1946, foi admitido como agente fiscal da Inspecção de Espectáculos.

Aquilo era uma treta. Não inspeccionávamos nada.

Quando é que funda a editora Contraponto?

A editora começou a funcionar em 1951, logo depois do primeiro número da revista. Nasceu no ensaio de uma terceira via e só tinha um critério: os gajos do Estado Novo não podiam entrar. Vivia um bocado à mercê do facto de eu e o Jaime Salazar sermos amigos. Quando foi publicado o ‘Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano’, de Mário Cesariny, o Jaime ficou f. Pensava que a editora era só para ele. Mais tarde, o mesmo aconteceu com Cesariny, quando Herberto apareceu. Razão tinha o Gaspar Simões em chamar- -me ‘O sacristão do Surrealismo’, por publicar aquela gajada. Não faz muito tempo, vendi a editora à irmã do Manuel Alegre por um preço de m..

Era amigo de Cesariny?

Essa pergunta traz água no bico. Dizem que nós éramos amantes. Um disparate. O gajo não fazia o meu género. Eu nunca tive a mania de Paris. Ele tinha.

A sua colaboração nos jornais começou no ‘O Globo’, em 1945, e ainda há dez anos escrevia na imprensa

O Nicolau Santos, que na altura era director do jornal ‘O Público’, convidou-me para escrever uma crónica. Os gajos até pagavam bem. Mas tiveram o azar de anunciar Luiz Pacheco escritor polemista. Dava-lhes jeito que eu desse porrada. Mas durante meses não lhes fiz a vontade. Podem contar comigo para dar porrada, mas jamais por incumbência.

É verdade que, uma vez, enquanto traduzia um livro, esteve quase para ser publicado um palavrão?

Publicado não digo, mas aquilo fez-me correr. Eu estava a traduzir um livro para crianças e havia uma palavra cujo significado em Português eu não encontrava. Para não me esquecer escrevi a vermelho c. Quando me lembrei... falei à editora, que me disse que o livro já estava nas mãos do revisor. Corri para a casa do gajo. E lá estava o c. marcado a vermelho, mas fui a tempo. O c. foi substituído por penacho.

É autor de muitos livros, mas nunca escreveu romances.

Porque é preciso ter disciplina. Mas não é como escritor que posso ser importante. Se me perguntarem da minha importância é como editor. Editei muitos livros que eram muito baratos. Tinha bons autores, Raul Leal, Natália Correia, António Maria Lisboa, Herberto Hélder, Vergílio Ferreira, Mário Cesariny. Jamais editaria, por exemplo, o Fernando Namora. Ele era um aldrabão. Ou o José Agualusa, que não escreve nada. É um pateta alegre.

O que é preciso para escrever bem?

Ler muita coisa. Estar atento. E há gajos que escrevem sem nunca terem lido uma frase.

Gosta da escrita de António Lobo Antunes?

Muito. Gosto quando ele fala do bairro onde nasceu, Benfica. Tem muitas qualidades e anos de escrita. Mas é um bocado apanhado da pinha. Também tem a maluqueira de dizer que não consegue viver sem escrever. E tem razão. Ele é o escritor mais internacional de Portugal.

E José Saramago?

Também, embora de maneira diferente. Mereceu o Nobel. Saramago e o Lobo Antunes têm uma coisa em comum: são escritores que já só escrevem para o estrangeiro.

O que nos diz dos políticos?

São uns m. Comparados com eles próprios. Aquela que foi ministra das Finanças era uma tipa séria, mas era cá um camafeu.

Gosta do José Sócrates?

Quem é? Não o conheço.

Mas gosta de Pedro Santana Lopes?

É um ‘bom vivan’. Não deixou obra nenhuma, mas sabe viver. Andava nas discotecas e estes gajos – o pequeno, o gajo que é quase anão – fez-lhe a folha. O Santana é um senhor. Gosta das noites. E bebe o seu copinho. Eu deixei de beber há uma semana. Ao almoço bebia vinho – tinto, pois está claro. Quando se fala em vinho fala-se em tinto.

João Soares, quando era presidente da Câmara Municipal de Lisboa, fez-lhe uma visita e trouxe-lhe umas garrafas de tinto.

E que belo tintol! Apareceu no Natal, com um funcionário. Trouxe-me vinho, um belo presunto e livros. Vinha com a ideia maluca de eu fazer um artigo sobre o governador do Costa do Castelo.

O País reconhece as pessoas?

Não podemos falar de um só País. De Lisboa ao Porto existem dois países ou, talvez, existam quatro países em Portugal. Por exemplo, o Mário Soares, quando era Presidente da República, deu-me 650 contos. Uma vez, no Chiado pedi-lhe 20 paus emprestados. E ele deu-mos. Este presidente, o actual, que tem aquela cara, não me deu nada.

Vive de alguma pensão?

Tenho um subsídio de 120 contos, graças ao Alçada Batista. E também ao Balsemão, que teve a feliz ideia de inventar o decreto do mérito cultural. O Santana despachou um decreto que favorece pessoas que estão na minha situação. Mas não é por isso que gosto do rapaz. O tipo sabe o que é bom. O que é bom para mim são umas garotas, que vêm cá de manhã para me fazerem a higiene. Não é mau.


QUESTIONÁRIO

Um País... Montijo

Uma pessoa... D. Afonso Henriques

Um livro... ‘Gustavo, o Estroina’, de Paulo Koque

Uma música... ‘Variações’ de Golberg

Um lema... Não me lixem. Não me chatem

Um clube... Clube Jardinense, o clube do Montijo
Miriam Assor

7.5.07

O Funcionário Cansado
.
A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita

estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música

São palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só

[António Ramos Rosa]