9.12.07

INQUEBRÁVEL
.
Dez anos? Não me peçam
memórias datadas.
Os primeiros óculos.
O mundo agora
com uma armação,
um vidro, uma distância.
.
Os óculos dividiam
quem os não usava
dos outros, os vidrinhos,
putos com um apêndice
tosco e visível,
putos com defeito,
com um acessório,
um gozo, a menor
traulitada os desfazia.
.
As minhas lentes de plástico
(assim me disseram)
eram «inquebráveis».
Na época, ainda imaginava
matérias inquebráveis.
Como se eu, defeituoso
e afásico, fosse inquebrável.
Assim fiz a demonstração
aos basbaques e às feras,
com o dedo médio
contra o plástico
com mais força ainda,
inquebrável que era.
.
Aos pequenos golpes
uma lente
treme na armação
e num piparote
saltita no soalho encerado.
A troça desaba.
Como se tivesse mentido
e fossem frágeis
lentes vulgares
que se partem como se parte
o vulgar vidro.
.
Só anos mais tarde soube:
o plástico inquebrável
apenas solto,
inquebrável no chão,
fora dos óculos.
Ciência tardia.
Os meus inquebráveis óculos
face à multidão
quebrados como os outros.
Nada é inquebrável
se vacilamos.
O mal acidental
fica catástrofe.
A filosofia soçobra.
Vamos, pela vida fora,
amarfanhados
num equívoco.
.
[Pedro Mexia, in Vida Oculta, Relógio D'Água, 2004]

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